AVML alta via dei monti liguri fernando cintra

Boas vindas. Esse é meu primeiro conto e decidi começar por uma das viagens mais marcantes de minha vida.

Espero de verdade que você goste. E se gostar, por favor compartilhe com amigos e familiares. Caso você ainda não esteja cadastrado, registre-se aqui para ser notificado quando o próximo conto for publicado. É de graça e não tentarei te vender nada:

Dito isso, a história leva mais ou menos 30 minutos para ser lida. Portanto salve esse link em algum lugar caso queira continuar depois,. Ou prepare um café para ler o texto todo com calma. Acho que vai valer a pena.

Obrigado por estar aqui. De coração.
– Fernando Cintra

Parte 1: Milão

O ano era 2019 e se eu dissesse que me lembro como se fosse ontem estaria mentindo, pois me lembro como se fosse na era do faraó Tutankamon.

Eu já ouvi dizer que experienciamos o tempo de maneira diferente conforme envelhecemos. Tipo, 1 ano quando se tem 10 anos é 10% da sua vida, e quando se tem 20, não.

Não precisa ser matemático: os cinco segundos antes de seu vídeo começar no Youtube não são os mesmos cinco segundos do seu primeiro beijo. Quarenta e cinco minutos do primeiro tempo entre o sub 21 do Ituano e Catanduvense não são iguais aos quarenta e cinco finais entre França e Argentina.

Mas fujo do tema.

Por razões que não compartilharei hoje, mas irei eventualmente, eu resolvi fazer viagens de bicicleta naquele ano.

E eu queria fazer todas elas na Itália. Eu tinha descoberto um ano antes que eu tinha ancestrais italianos e eu desenvolvi uma obsessão por conhecer a Itália e entrar em contato com as raízes de lá. Na verdade, isso é falso pois estou tentando simplificar. A Itália veio antes de saber de ancestralidade e por mais que essa seja uma história interessante, não é o foco de hoje. Contarei em outra ocasião.

De todo modo, a única coisa que eu sabia era que minha avó, Dirce Santa Clara, era descendente de italianos. Meu primo, Thiago, me ajudou a desvendar que na verdade era Santachiara, e depois descobri que veio de algum lugar próximo a Modena. Modena que era rival de Bolonha já era de Tutankamon, e continua sendo na era de AI, algoritmos e hambúrguer vegano. 

Pois bem. Seis anos antes, eu tinha ido da Lituânia à Romênia de bicicleta. Outra história futura. Basta dizer que eu superestimei apoteoticamente o quanto aquela viagem tinha me tornado um expert em cicloviagens.

Porque Lituânia, Polônia e Hungria são mais planas que uma vasta panqueca muito plana. 

fernando cintra pedalando cicloturismo na polonia

Daquelas panquecas que até a mais escorregadia bola de gude não rolaria para nenhum lado. A Polônia no norte, na região de Bialystok, é fundamentalmente plana. É inacreditavelmente plana. O terra-planismo nasceu lá, quase certeza. Pobre Copérnico. A maior parte da Itália, não.

Em Agosto de 2019, eu desembarquei em Milão e também percebi que a Polônia não é tão quente como Milão. Fazia o dia mais quente da história da cidade até então. E eu carregava uma bicicleta dentro de uma caixa de papelão e duas mochilas enormes até meu hotel.

Em Milão passei uma semana me preparando.. E isso quer dizer: comprando coisas que eu não tinha lembrado de trazer do Brasil, ou que simplesmente me dei conta só no Hostel que eu precisaria. Fiquei com uma coriza insistente, que não passava, e eu não sabia se conseguiria partir no dia programado. 

No Brasil, me ajudava muito comprar soro fisiológico. Na Itália é muito raro encontrá-lo. Eles não vem em garrafas, mas sim em pequenos frasquinhos de uns 10ml cada. Comprei um arsenal.

Munido de soro e de outras coisas mais, passei a explorar a cidade. 

bicicleta rockrider XC500 pesta em milão

Milão não representa a Itália, pois é muito mais cosmopolita que os vilarejozinhos que eu cruzaria nas semanas seguintes. 

Anos depois eu morei na Italia (sim, outra história futura), e descobri que, na verdade, quase nenhuma cidade italiana representa o país. Cada lugar tem tantas particularidades quanto possível. A comida, o dialeto, a relação com trabalho, a abertura. Tudo muda em questão de centenas de metros. 

A Itália, no entanto, é a terra das contradições: a única coisa que os unifica e os assemelha é a forma como eles uniformemente detestam-se entre si, passional e pacificamente, a exemplo de Bolonha e Modena.

Milão é uma cidade única, que possui um charme especial. Foi uma semana bem vivida e aclimatizadora. Eu conheci um pouco mais do país, de clichês televisivos, de hábitos fáceis de perceber e de histórias de viajantes no hostel em que fiquei.

Mas eu não tinha ido à Itália por Milão, Bolonha ou Modena. 

Eu tinha ido pela Ligúria

Parte 2: A Rota

A rota que eu iria percorrer se chamava Alta Via dei Monti Liguri e o nome significa exatamente isso que você leu. 

As pessoas associam a Ligúria ao mar, mas ela, ouso dizer, é principalmente composta de incontáveis montanhas que vão da província de La Spezia, onde eu comecei a viagem, até a província de Impéria, onde eu a terminei, na fronteira com a França.

La Spezia é uma cidade pequena para os padrões brasileiros e média para o Europeu. Com cerca de 90 mil habitantes, La Spezia fica mais ou menos na divisa entre a Ligúria e a Toscana, incrustada entre os apeninos e o Mar Mediterrâneo. 

Pom’, CC BY-SA 2.0

A constrição geográfica, somada ao fato da cidade ter um dos mais importantes portos militares da Itália, tornou os Spezzini um povo notoriamente rígido. Eu não senti essa rigidez só alí, para ser sincero. À primeira vista, achei todos os italianos do norte mais duros que eu imaginava. À segunda vista, também.

Eu levaria aproximadamente 15 dias pedalando para chegar a Ventimigia, do outro lado da Ligúria. Só para se ter uma ideia do que 15 dias nessa distância significam: se eu fosse pela costa, nas belas estradas asfaltadas que recebem turistas em baldes no verão, eu teria terminado a rota em 2 dias. 

Para efeito de comparação: seria como dizer que demorei dois dias para percorrer toda a extensão da Avenida Paulista. Você, confuso me perguntaria como assim, e eu te diria que  escolhi Alta Via della Avenida Paulista, onde eu pulo do topo de um prédio ao outro carregando malas, 2 litros d’água, fogareiro, itens de acampamento, um livro que nem abri e meias insuficientes. E uma bicicleta, claro.

Eu ganhei essa bicicleta da Decathlon, já que na época eu trabalhava profissionalmente como criador de conteúdo de bike. 

Aliás, a bicicleta não tinha nome. Eu gosto de dar nomes às minhas bicicletas, pois nessas viagens passo muito tempo sozinho e elas viram uma espécie de Wilson em terra firme. Como a bike foi dada meio de surpresa, eu não tive tempo para nomeá-la. Ainda.

É o bastante dizer que eu estava envolto em uma aura de otimismo e determinação, com um toque intoxicante de empolgação.

Eu não via a hora de iniciar a aventura. Depois de uma semana em que meu relógio interno também correspondeu a uma era dinástica egípcia inteira, chegou o dia de ir de trem para La Spezia.

Parte 3: Sede

O trem até La Spezia estava forrado de turistas. Verdadeiras hordas. Todos indo ao mesmo lugar: Cinque Terre. Eram verdadeiras multidões de gente do mundo inteiro querendo uma foto instagramável com as maravilhosas vilas verticais costeiras. De fato, Cinque Terre vale a viagem, apesar da quantidade insana de visitantes.

A minha rota, no entanto, não envolvia trem turístico, mas sim uma longa peregrinação subindo e descendo praticamente todos os principais cumes dos montes dos Alpi Liguri. Como já disse, eu não sabia o que isso queria dizer, pois o leste europeu me preparou para muitas coisas, menos morros.

Cheguei em La Spezia e não tive tempo de refletir. 

bicicleta com bolsas de bikepacking na liguria em la spezia

Roboticamente, saquei a bicicleta sem nome de um mala-bike improvisado, montei-a e fui até o centrinho comer focaccia sentado num banco da praça.

Eu parti logo depois. Era dia 28 de Agosto, verão, e o sol se poria às 21h, sendo já escuro o bastante para ter que parar por volta das 20h. Eu teria que achar algum lugar no meio da floresta para acampar por volta das 19h para que pudesse “jantar” e me preparar para dormir.

Na correria eu esqueci nada mais, nada menos que água. Tipo… sair pedalar sem água é um erro. No verão tórrido da Italia, ainda mais. E tendo já nos primeiros 10km uma árdua subida pelas trilhas acima de Cinque Terre. É como ir pra praia sem Protetor. Não, pior, é bem pior. É como assistir o replay do primeiro tempo de Ituano e Catanduvense. Não tem nada a ver, eu sei, mas a agonia é igual.

Eu subi um morro enorme logo na primeira tacada. As vistas do Mar Mediterrâneo me embriagaram! Era uma beleza estupenda que só aumentava à medida que eu subia.

bicicleta com o mar mediterraneo ao fundo
bicicleta com mar ao fundo na liguria
contrate entre mar e ligura

Aumentava também minha sede. Eu já estava há duas horas sem água, e eu estava morrendo de sede. Eu ia demorar pelo menos mais duas até chegar no primeiro vilarejo. 

Sentir sede é horrível. Você começa a perceber a razão sumir e pensamentos delirantes tomarem forma. “E se eu mastigar uma folha dessa árvore?” por exemplo.

O que fazer?

AH! Os frascos de soro fisiológico!! Claro.

Quando me lembrei disso, passei os próximos 30 minutos quebrando lacre e bebendo de 50 frasquinhos minúsculos de soro fisiológico. Nada mais sisifiano que beber a conta gotas naquela situação. Albert Camus estaria orgulhoso. Eu não poderia estar mais feliz. Encontrei água depois e me esbaldei nela, mas a alegria e alívio do soro em conta gotas nunca mais senti.

Continuei subindo, descendo, subindo e descendo por trilhas. Esse foi o tom de toda a viagem, diga-se de passagem:

trilha de mountain bike na liguria
fernando cintra pedalando em trilha de mountain bike na liguria com pesta

Eu descobri uns dias depois que a AVML (o acróstico de Alta Via dei Monti Liguri), é uma rota de longa distância de trekking. As trilhas eram absurdamente desafiadoras e eu passei boa parte da viagem carregando a bicicleta na descida tanto quanto na subida.

Nesse primeiro dia, no entanto, eu mais subi que desci. E não empurrei a bicicleta tanto assim. Mesmo assim, estava começando a me preocupar pois o sol se poria e não tardaria. Precisava achar um lugar para acampar. 

Parte 4: Coragem

Em determinado momento, eu deveria escolher entre cruzar mais uma sessão de floresta, ou acampar num lugar meio à vista numa estrada de terra. Resolvi seguir.

As florestas da Liguria são uma espécie de Mata Atlântica de boa. Ainda dá para ver através dos bosques, mas não é como uma paisagem de pinheiros digna de Senhor dos Anéis. 

Elas são sombrias e úmidas, porém também não pantanosas. E das sobras brotava um perfume com um tom de flores doce e sutil que se misturava à maresia permanente do mar. Eu nunca mais senti aquele cheiro, mas eu consigo pensar nele e resgatar cenas diversas.

floresta na liguria
floresta liguria

A proximidade constante ao Mar também fascinava. Mas ao passo que era fácil sentir sua presença e saber conscientemente que ele estava “logo alí”, ele parecia também a milhares de quilômetros de distância. Nada ao meu redor remetia a palmeiras, areia e guarda-sóis.

A floresta era tão imersiva que era mais surpreendente ver o mar quando ele se apresentava no horizonte que avistar um cervo curioso ao escurecer.

E nesse escurecer, eu aperto o passo.

Logo depois da pressa e logo antes do desespero, me deparei com uma clareira encantada. Não tem outra forma de descrevê-la:

montando acampamento em viagem de bike na liguria

Montei acampamento, inflei meu isolante e travesseiro. Sento no tronco ao lado. Comi um enorme pão com algo, barras de cereal e isotônico. E observei o mundo escurecer ao meu redor.

minha foto favorita montando acampamento na liguria

Cai a noite.

Noto o absoluto breu no qual me envolvi. É uma escuridão sólida, plena, voraz. Ela engole todas as árvores, troncos e rochas ao redor de maneira tão faminta quanto eu acabei de comer meu jantar.

E já dentro desse estômago noturno, surgem os meus vizinhos. Sons medonhos que vêm de direções que não sei precisar.

Um esturricado. Outro grave. Aquele parece um uivo. Alguns galhos na distância se mexem.

Eu entro para o segundo invólucro: a barraca. São 8h30 da noite mas já não se vê mais nada. E esse invólucro tênue só me protege de insetos solitários, nada mais. Qualquer um da vizinhança florestal entraria ali sem nem precisar bater na porta. Aliás, que porta?

“Preciso dormir”. Estou acabado. Foi um dia muito longo. Fecho os olhos e acordo com um barulho fantasmagórico.

“Preciso mesmo dormir”. Coloco um fone de ouvido. Ele me transporta para um terceiro ambiente. Programo para ouvir apenas sons de chuva e vento.

Um útero dentro do invólucro dentro do estômago noturno.

E nessa barreira sonora, me desfaço em direção ao mundo onírico. Sonho coisas aleatórias. Acordo, no outro dia, inteiro.

5 horas da manhã e o sol começa a despontar.

Eu conto essa história para algum amigo no dia seguinte. Envio a foto acima junto. 

“Você é muito corajoso!” afirmou ele, com convicção. Mas essa frase, despretensiosa, me franziu as sobrancelhas.

Algo alí simplesmente não me caiu bem. Não me dei conta do meu desconforto na hora. Só percebi muito tempo depois, mas senti uma repulsa enorme. Eu, corajoso?

E viajando de bicicleta, sinto minha alma viajar em outro tempo, do meu passado recente, e para outros invólucros. Três, também:

O primeiro, uma cidade grande. O segundo, um escritório gélido. O terceiro, um emprego infeliz.

Eu não respondi meu amigo. Mas hoje, se pudesse, teria dito a única coisa possível que aprendi sobre coragem:

“Sinto muito, mas corajoso, não.

Não sou corajoso, pois sei que aqui os sons eram apenas de corujas, grilos e nada mais.

Não sou corajoso em largar o emprego opressivo, o ar condicionado feroz, a cidade monstruosa.

Coragem seria se tivesse ficado lá, pagando para viver.

Coragem seria se não tivesse me lançado em outra aventura de bicicleta.

Coragem só existe quando há medo.

Coragem seria para mim viver essa vida evitando meus caminhos, não fazendo o que gosto.

Coragem existe para quem não conhece a força em si. Se eu reconheço minhas forças e minhas fraquezas, não recorrerei desnecessariamente à coragem. Se eu resolvo ser corajoso e enfrento um leão, essa coragem pode muito bem ser acompanhada de ignorância, arrogância e estupidez.

Aquela cidade era meu leão.

Eu saí daquele ringue.

E o que ficou no lugar é simplesmente uma vida que gosto de viver. Deixo a coragem para usar quando realmente precisar”

Parte 5: Pesta

A AVML foi o maior desafio físico que já enfrentei. As subidas nas estradas de terra eram intermináveis. Quando entrava em trilhas, eram extremamente técnicas, com raízes, rochas e mato fechado. 

Um agravante é que, nos montes, a dificuldade de reabastecimento era enorme. Portanto, eu precisava comprar comida e levar água para o dia inteiro ou até mais que isso.

Acho que no terceiro dia eu já estava absolutamente exausto. Eu empurrava a bicicleta até para descer por características já mencionadas.

O cansaço físico sempre teve um efeito relaxante em mim. Sim, gera um stress momentâneo. Porém eu estava num lugar de beleza ímpar. E extremamente curioso por tudo que me cercava.

Com a guarda baixa, eu me deixei envolver física e emocionalmente pela Ligúria. Me deixei ser tomado pelas pessoas, pelas vilas esquecidas, pelos vales com densas florestas e pelos picos com vistas estonteantes para o onipresente Tirreno.

Subida na liguria
trilha técnica na liguria
pedalando em uma trilha de mtb
estrada de terra no morro com o mar mediterrâneo ao fundo

A Ligúria tem também algo que eu desconhecia poder ser tão bom. Pesto.

Cheguei a um vilarejo de nome irrelevante. Estava esfomeado. Na verdade o nome provavelmente teria sido memorável não estivesse eu possuído por uma fome insana.

Não havia ninguém em nenhum lugar. Italianos de vilazinhas assim fecham tudo do meio dia às três ou quatro da tarde. Se você está fazendo uma viagem de bicicleta e tentando entender algo de Santachiara, passou por um lugar como esses e sentiu fome, azar o seu.

Eu insisto e passo por uma estradinha vicinal até ver um senhor sentado num toco rente a um muro de tijolos desbotados, dentro de algo que poderíamos chamar de chácara no Brasil.

Ele me avista e duvida do que vê. Talvez simplesmente por não ver bem, talvez porque nada no que viu fazia sentido. Eu sinto uma leve abertura para me aproximar.

O homem se levanta com custo e caminha para a porteira.

Pergunto com meu italiano macarrônico onde poderia encontrar algo para comer ali. 

Ele responde em um italiano igualmente torto – pois cada valezinho tinha seu dialeto próprio. Eu não compreendo quase nada do que ele disse. Ele percebe o óbvio, que eu venho de muito longe, aponta para uma estrada e repete a única palavra que eu tinha entendido: Margherita.

Eu achava que ele estava falando do sabor da pizza. Pizza? Maravilha!

Eu sigo a estrada e me deparo com um casebre com uma mesa do lado de fora. Um pequeno letreiro me corrige: Margherita era o nome do lugar, não do prato.

restaurante margherita

Tudo parecia lacrado. Não poderia ter ninguém alí, mas eu resolvi abrir a porta mesmo assim. Lá dentro o som de uma conversa calorosa se revelou. 

Quatro senhores bebiam vinho de uma garrafa sem rótulo e se voltam para mim. Um silêncio bizarro segue por alguns instantes. Passado o escaneamento, eles continuam a discussão. Um deles lê trechos de um jornal em Italiano em voz alta, e depois todos discutem em dialeto. Parece de uma importância suprema.

Ainda mais importante para mim é comer,  e eu me sento numa mesa redonda no canto, com uma toalha muito bela e gasta. 

Uma senhora veio de uma cozinha com um sorriso e um passo igualmente lentos. Ela só me perguntou “acqua e vino?. Eu disse “solo acqua, grazie”. Ela segue “te trarei trofie al pesto. É o melhor pesto da Ligúria”. Eu disse em tom descontraído “não é o melhor da Itália?” e ela respondeu numa seriedade firme, quase ofendida, “Io che ne so, in Italia!” ou “sei lá eu na itália”.

Beleza, entendi. Pesto só poderia ser bom na Liguria. Aliás, Pesto só poderia ser Pesto na Liguria. Nos outros lugares o raio que o parta – era molho de manjericão ou azeite com queijo, menos Pesto.

Mas tanto faz, pois o Pesto era absolutamente divino. Eu não sabia como algo verde num prato de macarrão poderia ser tão divino. Eu não tenho outra palavra para descrever aquela montanha de macarrão ao pesto que a senhora do Margherita colocou no meu prato que não divino.

Ainda veio quatro filés de porco depois. Eu disse quatro. E eu os comi todos. A trilha sonora eram quatro senhores falando de assuntos incompreensíveis enquanto bebiam vinho. Que momento memorável. Que momento.

Eu terminei de comer e rolei para fora. Encontrei minha bicicleta que deveria estar dizendo “vem mais pela frente né”? “Sim, Pesta, Sim.’ Eu sempre dou nome às bicicletas que eu tenho. E naquele momento, dado ao meu êxtase de ter comido o melhor pesto não da Itália, não do Mundo, mas da Ligúria, ela passou a se chamar Pesta.  

Parte 6: A queda

A cidade de Gênova – capital lígure – marca o ponto intermediário da AVML. A rota não passa por dentro da caótica cidade, e sim nos morros ao redor, onde avista-se a cidade e seu porto movimentado.

Genova ao fundo com bicicleta pesta na frente

A vila que marca mais ou menos o ponto intermediário chama-se Busalla, e eu não via a hora de chegar lá. 

Já estava pedalando (empurrando) há uma semana e meu dia de descanso seria só em Sassello, uns 3 dias depois. 

Eu cometi então o maior erro que se pode cometer na vida, em qualquer coisa que se faz, de fritar ovos a passar café: eu tive pressa.

Na pressa, percebi que poderia economizar uma hora ou até mais se pegasse uma trilha alternativa até Casella e de lá pegar um trecho de asfalto até Busalla. A tal trilha alternativa era assim:

mato fechado na trilha

Com muito custo eu empurrei Pesta por mato adentro, cheio de espinhos. Sem sinal de celular e sem poder voltar atrás, segui empurrando. 

Por um instante, achei que daria tudo certo, pois tive uma vistas belíssima que demonstra bem o contraste constante do mar com morros. 

Mar mediterraneo ao fundo com montanhas na frente

O lado direito da trilha era quase um muro de rocha e o lado esquerdo, barranco. Uma regra para passar por trilhas assim é colocar a bicicleta do lado do barranco, pois se algo cair, não é você.

Eu estava levemente tenso, pois aquilo obviamente não é onde eu deveria estar. Mas tentei manter o espírito positivo e monologuei com Pesta

“Sabe, Pesta. Fico pensando. Você é uma bicicleta de cross country e quadro de alumínio. Eu sempre quis ter uma bicicleta de carbono. E agora vejo que seria um erro enorme. As malas te arranhariam toda, e esses espinhos te rasgariam rapidinho.

Que sorte eu tenho de você comigo.”

Sons de freio e passagem de marcha eram a resposta.

“Quando voltar para o Brasil, eu vou te levar conhecer Gonçalves, lá na Serra da Mantiqueira. Será seu batismo brasileiro. Temos que ir em Abril pois meu pai vai de moto, e ele pega pinhão da estrada e nos espera lá na frente”

Dessa vez, porém, ela não respondeu nem com um mero ranger.

Em um dos trechos mais estreitos, com o barranco mais íngreme, eu estava com Pesta do lado errado. Eu pisei em falso e caí. 

Eu não consegui nem entender o que tinha acontecido. A sensação mais parecida é de estar numa vôo e de repente o avião perder altitude. Você nem tem tempo de entender o que aconteceu. Essa sensação, de não ter chão, literalmente, é muito marcante. 

O que me impediu de seguir em queda livre em um desfiladeiro foi um arbusto cheio de espinhos. Pesta caiu na minha cabeça, e em uma fração de segundos eu estava totalmente preso, com os espinhos me perfurando. 

Eu fui tomado por um pânico produtivo. Sentir pânico real é horrível e eu não desejo nem para meu pior inimigo. Mas digo produtivo pois eu imediatamente me dei conta da urgência da situação.

Com um braço eu segurei Pesta – que há uns segundos me escutava pacientemente tagarelar de viagens que não viveria se não saísse dali – e com o outro fui tentando tirar os espinhos do meu corpo. Não dava para tirar espinhos com a mão. Eles simplesmente ficavam presos e machucavam meus dedos. 

Nesse instante, me lembrei que tinha uma pequena tesoura que considerei jogar fora diversas vezes durante a viagem. Tinha sido o ítem mais inútil até então. Eu consegui alcançar meu pequeno alforge de quadro onde ela estava guardada. 

Peguei a tesoura, agora vitalmente útil, e com muito custo comecei a cortar alguns dos espinhos que tinha me prendido – e ironicamente me salvado – e joguei Pesta para cima. Agora só precisava me desvencilhar do arbusto. A cada espinho que cortava eu escorregava levemente para baixo. Com muita paciência consegui subir e evitar uma queda livre. 

Eu tenho uma cicatriz desse dia até hoje e vou colocar a foto nesse link, pois se você não quiser ou gostar de ver uma pessoa suja e sangrando, não precisa clicar: https://photos.app.goo.gl/qkrnZJj4zJzJTtmN7

Eu saí dalí muito assustado e trêmulo, e a dor era lancinante. Doía o corpo inteiro, da queda, dos cortes, e do arrependimento da pressa.

 Eu tinha realmente acabado de me livrar de uma situação que poderia ter sido bem pior, abraçado por espinhos. Me fez refletir brevemente sobre uma metáfora que hoje me soa banal – espinhos que me salvaram, não é assim às vezes na vida? – mas que na hora achei de uma profundeza absoluta.

Caminhei um pouco até uma pedra e me sentei por uns instantes. Não tive muito tempo de processar o que sentia, pois o sangramento não parava, e eu precisava chegar a algum lugar mais civilizado para me tratar.

Continuei naquela picada por umas boas duas horas. Ao final a trilha tinha se misturado com o curso de um rio e eu já estava pedalando sobre o leito. Com muito custo encontrei uma estrada asfaltada que me levou até Busalla.

vila de busalla

Eu limpei bem os cortes, descansei, comi uma focaccio com pesto, claro, deixei a adrenalina baixar e fiz a única coisa possível naquele instante. Segui remando contra a incessante onda dos morros, uma após a outra. 

Mesmo com o susto, não foi naquele momento que minha postura em relação à jornada mudaria. Ainda.

Parte 7- Névoa

Naquela mesma noite, eu planejava cruzar mais uma crista de um morro. Eu cheguei no início da trilha às 18h. O GPS dizia que levaria 1 hora para chegar ao outro lado, e eu sabia que isso significa pelo menos umas 3.

Nesse instante percebo que o tempo estava começando a mudar. E ia mudando de maneira esquisitamente veloz. A cada minuto o vento aumentava, e uma intensa névoa tomou conta da paisagem. 

Resolvo montar o acampamento numa lugar que deveria ter uma vista maravilhosa, mas que só se via a um palmo do nariz. Curiosamente, dormi muito bem essa noite e os invólucros noturnos já não eram mais tão intensos assim. 

Acordei no outro dia e a névoa tinha apenas se intensificado. 

Foi alí também o trecho mais difícil de toda a viagem. Eu não sei se essa imagem vai conseguir mostrar o que representou as trilhas desse dia, mas foram absurdamente duras.

Quando cheguei ao topo da crista, só ví uma cruz, que normalmente deve servir para coroar uma bela vista do mar, mas que só serviu como um marco fúnebre.

acampamento no dia da nevoa
empurrando a mountain bike no dia da nevoa
cruz no meio da nevoa

A trilha começa a abrir e já é possível pedalar novamente. A névoa torna-se menos intensa. Eu começo a ouvir de direções incertas daquela paisagem etérea o tintilar dos sinos das ovelhas e vacas pastando. Algo surreal.

pedalando por single track na neblina

Me deparo com o local que era para ter passado a noite: um abrigo de montanha mantido pelos voluntários do Clube Alpino Italiano. 

refugio de montanha do clube alpino
dentro do refugio de montanha do clube alpino

Teria sido uma noite muito relaxante. Decido me sentar ali dentro. Com Pesta do lado de fora, um silêncio encantador e costumeiramente sem sinal de celular, começo a pensar.

E pela primeira vez em quase dez dias me ocorre:

– Mano. Que que eu to fazendo aqui? Eu estou sofrendo. Estou rasgado, não tem mais nenhuma roupa limpa há dias, está tudo doendo, estou cansado. Pesta já está dando sinais há dias. Eu simplesmente não aguento mais. 

– Você não aguenta mais, ou não quer mais?

– Qual é a diferença?

– A diferença é entre poder e querer.

– Não tem diferença alguma. Eu estou muito cansado e não aguento mais. Está tudo doendo. Não quero ter que passar por isso de novo.

– A-há. Viu. Não quer.

Que inferno. No transe constante entre o esgotamento físico e prazer de uma aventura que jamais tinha vivido, meu subconsciente conversou muito comigo. Eu me deparei com todo tipo de questionamento infernal sobre a razão por trás das minhas escolhas.

Agora realmente eu teria que admitir que não queria mais. Que eu podia, pois uma pedalada a mais todo mundo pode dar. Mas que eu estava só de saco cheio mesmo. 

– Já que você é um fraco e não se preparou direito para essa viagem, que tal pegar leve e conseguir aproveitar um pouco ainda do seu redor? Dias atrás você estava todo orgulhoso de ter constatado que coragem é um recurso a ser usado em doses homeopáticas, e agora está aí, cheio de querer ser, mané.

– Eu não sou fraco. Olha só até onde eu já cheguei!

– Ai gente, olha o menino aqui! Olha onde ele já chegou! Onde você chegou, troxa? Você não chegou a lugar algum. 

– Já cheguei muito longe! Tenho muito do que me orgulhar. Poucos teriam cruzado tantos montes e passado por tantas dificuldades

– Quer uma medalhinha de honra ao mérito, é? Nadar o oceano inteiro e morrer a dez metros da praia? O que você vai colocar na sua lápide? “Fernando, preferiu nadar mesmo sabendo que não conseguiria, e morreu a 10 metros da praia, só pra dizer que chegou longe, ao invés de se comprometer com o que se propôs a fazer e chegar até o final.

– Peraí, é isso! Eu vou chegar até Ventimiglia, mesmo que eu vá de carro até lá. É isso, não é? 

Silêncio. Pesta, como sempre, não tinha nada a dizer. Ela só concordava e rangia as vezes.

A névoa literalmente subiu. E figurativamente, silêncio.

De fato, eu acordava todos os dias com uma energia enorme, e com grandes expectativas do que o dia me revelaria, e diferentes aventuras que enfrentaria. Mas eu simplesmente não percebi o óbvio: aquela rota era muito, muito, muito mais difícil do que eu imaginava.

empurrando a bicicleta num dia com muita nevoa
passando por meio das rochas com a bicicleta
raizes na trilha

Era um nível de esforço físico insano. Às vezes eu tenho vontade de repetir a AVML simplesmente para me assegurar de que, opção A: eu estava muito fora de forma ou opção B: aquela rota tem seu devido lugar no hall de aventuras insanas.

Sim, eu tinha dia para terminar a viagem, mas a que custo?

Então, sem saber se se tratava de opção A ou B, me posicionei em relação à viagem de outra forma: eu teria que ter mais momentos curtidos que sofridos. E cheio de cicatrizes e dores, já tinha uma clara noção de quais momentos tinham sido bons e quais não.

Daí em diante eu não acampei mais, só fiquei em hotel e pousada, tomei banho toda noite, comi direito e descansei bem. Eu curtia acampar, mas se tornou um peso de todo dia ter que parar de pedalar e achar uma clareira no meio mato e comer presunto frio. Por alguns dias tinha sido legal, e talvez no saudoso e plano Leste Europeu teria sido legal. Alí, já tinha passado da conta. 

Além disso, em alguns trechos que eu percebia que a AVML me colocaria numa selva de morros de inclinação tragicômica, eu pegava a estrada de asfalto paralela.

Eu me senti um pouco frustrado com essas decisões, mas o alívio também veio, e em uma dose cavalar. Tudo bem, seria um ciclista frustrado e paralelamente um ciclista limpo, feliz e sem risco de vida.

Toda vez que, ao subir uma única montanha por horas, eu descobria a boa intenção a partir dessas provocações do meu subconsciente, ele se calava e a névoa se dissipava. A última frase era sempre a consciente. Depois, o silêncio.

E assim, mais tolerante comigo e com a Liguria, os dias foram passando.

Parte 8 – Fim

Daquele dia em diante eu comecei a curtir muito mais a viagem. Me arrisquei mais a falar com as pessoas mesmo tendo um italiano imperfeito.  Parava mais para descansar e tirei minhas fotos favoritas. 

Tomava mais tempo para descobrir joias locais onde comer e tive jantares inesquecíveis.

No penúltimo dia da viagem eu chegaria ao ponto mais alto de toda a AVML. 2500m de altitude. Eu coloquei música pela primeira vez na viagem. Fazia uns 15 anos que não ouvia aquele álbum. Era algo do Green Day. Eu nem sei de onde veio a vontade de ouvir Green Day. Tanto faz.

Esse dia foi meu favorito em toda a viagem. Eu curti demais a subida. Era uma estrada muito bela cheia de curvas, vistas para cumes e vales, campos com vacas pastando.

Eu dormiria exatamente no topo, no Rifugio La Terza.

Depois de um jantar magnífico com comida tradicional e um balde de sorvete, desligaram a eletricidade às oito da noite. E eu passei duas horas contemplando as paisagens e refletindo naquela epopeia.

Quanto tinha aprendido. Sobre bicicleta, trilhas, italiano, paciência, coragem, pesto, névoa, e tantas outras coisas.

É difícil explicar quão esgotado fisicamente eu estava depois daquelas duas semanas. Mesmo assim, eu era tomado por uma sensação de realização pessoal ímpar. De ter conseguido completar algo que me propus a fazer, e tendo levado comigo uma grande lição sobre parcimônia ao mesmo tempo.

Ficou em mim uma gratidão eterna às pessoas, comidas, cheiros e trilhas lígures.

O último dia foi absolutamente anti-climático. Praticamente só desci até chegar à costa, na caótica e movimenta Ventimiglia.

bicicleta pesta na estação de trem em ventimiglia

Deixei para trás abruptamente tantas coisas.

Os cervos, veados e corujas. Os monólogos com Pesta que só rangia, obedientemente. O odores de mar misturado com perfume de florestas densas. As trilhas traiçoeiras de vistas deslumbrantes. O pesto fabuloso e os acampamentos solitários. 

Anos antes, estava fazendo meu primeiro estágio em marketing, na Redecard. Eu comecei numa área chamada Inovação e o escritório era perto da Faria Lima. Muito atraente. Tinha um VR enorme quase maior que o meu salário e comia todo dia em restaurantes inacessíveis até então.

O primeiro semestre foi ótimo e eu aprendi muita coisa. Coisas que uso até hoje, aliás, pois ainda trabalho em fintech. 

Mas chegou julho e em julho estagiários tinham que tirar duas semanas de férias. Era obrigatório, não sei se pela legislação ou pela empresa. Não me lembro.

Após meus quinze dias de descanso, recebo um telefonema. Contato: Redecard. Ah, que maravilha, todos esperam minha volta triunfal! 

“Fernando, como foram suas férias! Estamos esperando você…”

Mas é claro, Sibele do RH! E eu também! Pois daqui em diante só pra cima! Foguete não da ré! Vamos fazer um call e medir KPIs e entregar jobs! 

“… mas algumas coisas mudaram. O escritório agora é em Alphaville em Barueri e…”.

Ah, Sibele… não, Sibele.. não! Eu morava no Tatuapé, e estudava em Calmon Viana. Eu preferiria fazer uma Alta Via diária a percorrer aquele calvário de novo. Mas Sibele não parou ali.

“… e como os estágios fazem rotação de área, agora você vai trabalhar com Performance do Call Center!”

Bem, como você pode imaginar, eu viajei para Alphaville por apenas 3 meses. 

Basta dizer que essa passagem abrupta é o que mais se assemelha – pelo menos ao que tenho acesso em minha memória – à chegada à estação de Ventimiglia. Fui retirado a fórceps das trilhas e montanhas e agora estava ao redor de ônibus de sightseeing, restaurantes com cardápios em inglês, motos barulhentas, famílias com cachorros em carrinhos de bebê e carros com som de reggaeton.

Tudo bem. Teve vida depois de Alphaville, e certamente teria vida depois de Ventimiglia.

A vida é assim, na maior parte das vezes. Apenas nós, o passado que nos moldou e o destino que sempre chegará. Por sorte ainda tinha Pesta a concordar silenciosamente.

E assim, sem bandas e fanfarras, sem faixas e rojões, peguei o primeiro trem possível. Destino: Grand Combins, na Suíça. Onde continuaria a próxima aventura – que também contarei um dia.

4 Comments

  1. Menos de 30 minutos…mas acho que as aventuras si servem para mostrar o escritor que você é. Acho que nem precisa delas…

  2. Que relato incrível! Fiquei fascinado com sua jornada, Fredão. Desde o acampamento no “estômago noturno”, passando pelos espinhos da vida e pelo soro salvador, pelo melhor pesto da Liguria (fiquei imaginando a cena você entrando no restaurante sendo encarado pelos falantes bebedores de vinho), até chegar aos seus diálogos internos e conclusões. Praticamente uma metáfora da vida, meu amigo. Fui completamente envolvido pela sua forma de contar a história, e pelas belas imagens também. Espero que a Pesta esteja bem, e que mais histórias venham por aí!

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